Blog

Nossos artigos, ideias e opiniões.

As verdades de cada um

Postado em 5 de Novembro de 2016

Num dia desses, conversando com uma criança na recepção da clínica, ela me disse que assistia a um programa x de televisão e que nele havia um personagem y que vestia uma roupa vermelha. Fiquei intrigada porque eu também já tinha visto o tal programa e tinha plena convicção que a roupa do personagem era laranja, eu tinha certeza. Perguntei novamente à criança a cor da roupa e sem hesitar ela me disse ser vermelha. Eu, continuava achando que era laranja, mas não insisti. Certa de que a criança e eu não tínhamos nenhum problema de visão, fiquei me perguntando como aquilo era possível, embora vermelho e laranja fossem cores bem parecidas. Este pequeno retalho da conversa insistia em não sair da minha cabeça, tanto que chegando em casa, parei e vi o tal programa novamente. E qual cor vi? Laranja, é claro! Sem dar explicações, pedi aos meus familiares num encontro no fim de semana que me dissessem que cor viam na roupa do tal personagem... alguns diziam ter visto laranja, outros, vermelho, e houve quem até viu amarelo. Vendo mais uma vez parecia vermelho mesmo; fiquei vendo mais alguns dias e, em algumas ocasiões até sombreava um tom amarelo também. Imaginei que fosse uma troca ou coisa assim, pois, o programa tinha um aspecto teatral e o figurino utilizado, embora fosse o mesmo, era versátil. Estava ali desvendado o mistério! Todos tinham visto em dias diferentes.

Eu podia ter olhado esta situação aparentemente corriqueira sobre qualquer outro ponto de vista, mas, o pensamento, insistia em me trazer a um mesmo lugar, aparentemente comum, ainda assim, cercado de novas possibilidades de reflexão: a verdade de cada um!

Implicada sempre pelo olhar individual, a verdade tem a ver com o momento em que vemos cada situação, como ver um retalho de um fato, um programa e achar que é uma verdade absoluta... Mais ainda, é inerente ao espaço onde cada um de nós habita, este, onde nos reconhecemos e criamos nossa identidade interligada, portanto, com nossa história e como, a partir dela, projetamos o mundo ao nosso redor. A verdade tem a ver ainda com nossa capacidade de abertura para o novo. ‘A verdade, pois, é um grande espelho quebrado, e cada um possui um pedaço’, é o que nos traz como reflexão um provérbio iraniano. Pensar que juntando o meu pedaço com o de mais alguém, tornando-se assim, um pedaço maior, nos dá aí a dimensão da importância da verdade do outro, e, que, neste encontro, o quão é possível ampliar, pois, a minha própria verdade! Talvez este meu pedaço se encaixe perfeitamente apenas com outro que está bem distante de mim, mas ainda assim, o que está próximo possui o seu pedaço, e minúsculo ou grandioso, diferente do meu, ainda assim, é um pedaço da verdade.

É interessante quando observamos as variadas visões acerca de um mesmo fenômeno, como uma cor, uma postagem na internet, uma notícia de jornal ou até mesmo uma reação frente à uma confusão cotidiana dentro de um banco. É muito interessante e rico perceber como cada um se posiciona, e se olharmos com olhos abertos, há alguma razão e algum engano em todas as diversas opiniões.... umas mais, outras menos.... A variedade nos causa espanto, cautela, contraposição, afinidade, e muitas outras emoções, mas, se permitirmos, há aprendizado e crescimento frente ao que pensar ou agir, ou até mesmo não fazê-lo desta forma.

Todos nós temos verdade no que pensamos, argumentamos e questionamos, no entanto, se pensarmos em quão inalcançável é a verdade absoluta, nos recolheremos à humildade do eterno aprendiz e de nossa visão parcial. Assim como, daremos outra dimensão ao outro e aos nossos relacionamentos. Nesta perspectiva, é possível melhorar muito as relações humanas; assim como alcançar a dimensão do quão pouco sabemos.

Deixo-vos hoje com Carlos Drumond de Andrade com seu fascinante pedaço da ‘Verdade’

‘A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia’

Desejo vida a todos!